Ana Stela

Ontem, 5/3/2023, foi um dia muito triste, porque recebi a notícia do falecimento em Lisboa, de Ana Stela de Almeida Cunha, ex-aluna da FFLCH-Letras - Linguística, minha primeira orientanda em Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado. Com ela aprendi a fazer pesquisa de campo em comunidades quilombolas de São Paulo. Durante um ano e meio visitamos regularmente, todos os finais de semana, o Cafundó, bairro rural de Salto de Pirapora, trabalhando no projeto “Vestígios de Dialetos Crioulos de Base Lexical Portuguesa em comunidades afro-brasileiras isoladas”, quando essas  comunidades ainda  não eram identificadas como quilombos. Gravávamos entrevistas com os falantes mais idosos com o objetivo de verificar se havia alguma variação na concordância de gênero –  tema do projeto de âmbito nacional de que participávamos, coordenado por Alan Baxter e Dante Lucchesi – porque se acreditava que a variação de gênero era um traço remanescente de uma crioulização prévia do português brasileiro que ainda poderia ser recuperado em comunidades constituídas majoritariamente por afrodescendentes. Essa pesquisa foi objeto de sua primeira publicação nos Anais do GEL “Remanescentes de línguas crioulas em comunidades negras rurais isoladas: ausência de concordância de gênero na linguagem do Cafundó. São Paulo, 1995.

Mas o que mais nos atraía no Cafundó eram as histórias que os falantes nos contavam, os modos de vida, as festas, os cultos que observávamos. Desde então Ana Stela começou a se encantar com os estudos antropológicos, mesmo que seu mestrado e doutorado tenham focalizado temas estritamente linguísticos. No mestrado, obtido em 1999, com bolsa do CNPq, “Processos de topicalização e deslocamento à esquerda na fala de duas comunidades negras rurais do Maranhão” e, no doutorado, em 2003, com bolsa da FAPESP, “A atuação do Parâmetro do Sujeito Nulo na variedade popular rural do português do Brasil”. 

Sua inquietação intelectual a levou a transitar por muitos espaços, na busca de conexões que explicassem a relação entre língua, religiosidade de matriz africana e educação. 

Foi leitora na Universidade de Havana entre os anos de 2006 e 2008 e pesquisadora convidada do Musée Royal de l’Afrique Centrale (Bruxelas) no ano de 2010. 

Desenvolveu o projeto “Caboclos Nkisis - A territorialidade bantu no Brasil e em Cuba”, visando a estimular, através de intercâmbios entre mestres da religiosidade banta, antropólogos e fotógrafos/documentaristas, um diálogo acerca das noções de espaço, território e identidade no Brasil (Maranhão) e Cuba (Havana e Cienfuegos), tendo como eixo das discussões as religiões de ascendência banta (Pajé de Negros e Terecô), 

Desde 1996, trabalhava com os quilombos do Maranhão, temas de seu mestrado e doutorado. Desenvolveu o Projeto Educacional “Falando em Quilombo” (Petrobras Cultural, 2005) em que produziu material didático adequado à realidade local, no quilombo de Damásio, localizado na zona rural do município de Guimarães (Maranhão).

Trabalhou em projetos na área da Antropologia Visual (BNB/MinC) "A estética do terreiro".  Foi ganhadora do 1º Prêmio UNESCO CRESPIAL pelo documentário “João da Mata Falado”. Elaborou e coordenou o projeto "Mandou me chamar, eu vim! - Historicidade e performance musical nos terreiros brasileiros de matriz negro-africana em Portugal" financiado pelo IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus). 

Ana Stela foi professora adjunta da Universidade Federal do Maranhão, mas seu interesse antropológico a levou a desligar-se da UFMA para fazer pós-doutorado em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa (CRIA/FCT) e pelo Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa (ICS).  Instalou-se em Portugal, onde encontrou ambiente favorável para pesquisas de campo em Angola, na região dos povos bacongos, falantes de quicongo, sujeitos de seus trabalhos comparativos entre Brasil, Cuba e Angola. 

Participou do Projeto “Município do Libolo, Kwanza Sul, Angola: aspectos linguístico-educacionais, histórico-culturais e socio-identitários”, que neste ano completa o seu décimo aniversário. No dia 05 de julho de 2013, oficializou-se - através de uma viagem de pesquisa à área do Libolo/ Angola - o Projeto "Município do Libolo, Kwanza Sul, Angola", doravante "Projeto do Libolo". O projeto é integrado por uma equipe internacional de investigadores nas áreas da linguística, ensino e formação de docentes, história e antropologia, coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Figueiredo, da Universidade de Macau, e Profa. Dr. Márcia Santos Duarte de Oliveira, da FFLCH/USP.  No campo da pesquisa, o projeto amplia as investigações acerca do português falado na África, do português brasileiro, das línguas bantas que participaram do contato com o português, além de propor novas abordagens históricas, antropológicas, sociológicas. 

Mas o Maranhão não foi abandonado por Ana Stela. Nos quilombos de Guimarães, ela coordenava o projeto “Saberes ancestrais, saberes locais: agricultura familiar, memórias gustativas e sustentabilidade nos quilombos do litoral ocidental do Maranhão locais, agricultura familiar e novas tecnologias”.  Ela tinha permanecido em Damásio por dezoito meses para resgatar com fidelidade o uso ancestral de sementes, plantações, produção e segurança alimentar, além da implementação das técnicas orgânicas e da criação da feira municipal.

Mais recentemente, presidia em Portugal a Associação Kazumba, que trabalha com educação antirracista e migração. Também coordenava o CineExu, série de projeções do cinema afro-centrado, em que se abordavam vertentes do racismo: religioso, institucional e de gênero.

Perseverante na busca de estabelecer contatos entre   africanos, conectou o grupo Yoka Kongo, fundado há quinze anos por músicos congoleses, cubanos e brasileiros, ao Vibe, projeto que situa Portugal, África Central e Américas num complexo atlântico. Um dos últimos trabalhos em que esteve envolvida.

Ela sempre me convidava para fazermos um trabalho em parceria. Só conseguimos escrever o capítulo” Línguas africanas no Brasil” publicado no livro Introdução às línguas africanas no Brasil que organizei e que a Editora Contexto publicou em 2015. Aprendi muito com essa experiência. Sinto não ter podido trabalhar mais com ela. Acho que é porque era difícil acompanhar seu dinamismo.

Incansável e independente, Ana ainda tinha outros projetos, que uma cirurgia de coração interrompeu.  Esse coração e mente gigantes que amaram a África, seus povos, suas línguas, suas culturas, que a levaram a buscar pelo conhecimento a superação do racismo, manifestado na intolerância religiosa, institucional e de gênero. 

O Departamento de Linguística da FFLCH/USP manifesta seu sentimento de tristeza e se solidariza com familiares e amigos, a quem apresenta suas condolências pela grande perda.