A Maria Helena de Moura Neves

 

Jose Luiz Fiorin

Professor aposentado do Departamento de Linguística

Universidade de São Paulo

Sábado, dia 17 de dezembro, a Linguística brasileira amanheceu mais pobre, a área de Letras amanheceu mais pobre, a universidade amanheceu mais pobre: tinha falecido Maria Helena de Moura Neves. Ela deixou-nos sem sua inteligência, sem sua alegria, sem sua generosidade, sem sua gentileza.

Conheci a Maria Helena, em 1972, quando fomos colegas num curso de especialização em Linguística ministrado pelo Professor Francisco da Silva Borba. Conhecer a Maria Helena, conviver com ela, ser seu amigo foi um dos maiores privilégios que a vida acadêmica me ofereceu, pois pude compartilhar de seus imensos conhecimentos em diferentes domínios de nossa especialidade, receber inúmeras provas de sua generosidade, espelhar-me num modelo de pesquisadora rigorosa, mas também humana.

Maria Helena de Moura Neves era professora emérita da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Era licenciada em Letras (Português-Grego, em 1970, e Alemão, em 1974) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; doutora em Letras Clássicas (Grego) pela Universidade de São Paulo (1978); livre-docente em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1984). Era bolsista de Produtividade em Pesquisa - nível 1A do CNPq. Nos últimos anos, era professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Araraquara. Era Coordenadora do Grupo de Pesquisa Gramática de usos do português do CNPq. Trabalhava na descrição da língua, principalmente na análise dos fatos linguísticos em uso. Seu principal referencial teórico era o funcionalismo.

Na análise de uma carreira acadêmica, a produção pode ser examinada em sua extensão, a quantidade, e em sua intensidade, a qualidade. Passemos à apreciação da obra da Maria Helena no eixo da extensão. Para isso, socorri-me do currículo Lattes. 

Maria Helena publicou 118 artigos em periódicos; 76 livros, computando os que ela escreveu e os que organizou, bem como as diferentes edições de um mesmo livro, o que é significativo, pois indica que se trata de uma autora muito lida; 83 capítulos de livros; 69 textos em jornais e revistas; 51 trabalhos completos em anais; 124 resumos em anais de congresso; 28 trabalhos dos demais tipos de produção bibliográfica (resenhas, prefácios e traduções); participou de 65 entrevistas, mesas redondas, programas e comentários na mídia. Apresentou 567 trabalhos em reuniões científicas, compreendendo comunicações e conferências. Ministrou 66 cursos de curta duração. Participou de 76 bancas de mestrado; 69 de doutorado; 14 de livre-docência; 28 de seleção de docentes e de concurso público para provimento de cargo; 37 de qualificação para doutorado; 63 de qualificação para mestrado; 8 de conclusão de curso de graduação. Orientou 47 dissertações de mestrado; 30 teses de doutorado; 4 estágios de pós-doutorado; 87 monografias de aperfeiçoamento ou especialização; 17 trabalhos de conclusão de curso de graduação; 40 iniciações científicas. Estava orientando no momento 6 dissertações de mestrado; 3 teses de doutorado e 1 estágio de pós-doutorado. Era membro do Conselho Editorial de 11 revistas especializadas e consultora de 6 Fundações de Apoio à Pesquisa.

Além disso, vou lembrar umas poucas tarefas a que se dedicou: participou de inúmeras avaliações institucionais, organizou muitos eventos científicos; coordenou GT da ANPOLL; participou de praticamente todas as comissões de avaliação da CAPES; foi membro do comitê de Letras e Linguística do CNPq (1994-1997; 2007-2010); foi Chefe do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Araraquara (1980-1981); foi coordenadora do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Araraquara. 

Pelos números apresentados, verifica-se que ela tinha uma enorme capacidade de trabalho.

Analisemos agora sua obra sob a ótica da qualidade. Ela é relevante, é significativa, é importante.  A obra da Maria Helena poderia, grosso modo, ser dividida em três grupos: estudos sobre teoria gramatical; obras de descrição do português; trabalhos lexicográficos. 

Citemos alguns de seus livros, que tiveram grande repercussão. O primeiro é A vertente grega da gramática tradicional, que na segunda edição revista e atualizada, recebeu o subtítulo Uma visão do pensamento grego sobre a linguagem. O segundo é a Gramática de usos do português, um monumento de 1037 páginas, complementada pelo Guia de uso do português, com 829 páginas. A Gramática de usos é uma obra de referência, em que se apresenta o uso atual do português no Brasil. Trata da língua viva, em funcionamento, explorando todas as suas possibilidades expressivas e comunicativas. Toma os itens lexicais e gramaticais, explicita seu uso em textos reais e expõe as regras que regem seu funcionamento, do sintagma ao texto. O que se busca é mostrar o sentido que se constrói com uma dada forma da língua. 

O terceiro trabalho é A gramática do português revelada em textos (2018). Essa obra foi contemplada em 2019 com o Prêmio da Associação Brasileira das Editoras Universitárias - ABEU, 1º lugar, na Área de Linguística. Nele, apresenta os elementos gramaticais em diferentes situações de uso, em diversos gêneros discursivos e em distintos tipos de textos. Utilizando sempre textos reais, ocorrências reais, mostra a gramática como uma “organização de princípios que leva à organização textual-discursiva” (2018: 18). O texto é a unidade básica com que opera, para desvelar o funcionamento linguístico. É uma obra monumental não só pela dimensão, mas pela coerência teórica, pela acuidade da análise e pela completude da descrição.  

Como se observa, a carreira de pesquisadora de Maria Helena de Moura Neves apresenta uma notável coerência. Podemos então reorganizar sua obra gramatical em três vertentes. Interessou-se pela história da gramática, estudando as condições de seu aparecimento no Ocidente, responsáveis por suas características, como, por exemplo, a normatividade. Dessa vertente de sua pesquisa deriva A vertente grega da gramática tradicional: uma visão do pensamento grego sobre a linguagem (2005).  Estuda profundamente as teorias de análise gramatical, elegendo o funcionalismo, cujos princípios e métodos estão expostos em A gramática funcional: interação, discurso e texto (2018); A gramática passada a limpo: conceitos, análises e parâmetros (2012); Texto e gramática (2011 [2006]); Ensino de língua e vivência de linguagem (2010); A gramática funcional (2001 [1997]), como base teórica de sua Gramática de usos do português (2011 [2000]), de seu Guia de usos do português (2012 [2003]), de sua A gramática do português revelada em textos (2018) e  de 3 dicionários de usos, coordenados por Francisco da Silva Borba, de foi coautora (Dicionário gramatical de verbos do português contemporâneo do Brasil (1997 [1990]); Dicionário de usos do português (2002); Dicionário UNESP de usos do português contemporâneo (2005). A terceira faceta de sua investigação é a questão do ensino da gramática, de que resultaram Gramática na escola (2010 [1990]) e Que gramática estudar na escola? Norma e uso na Língua Portuguesa (2009 [2003]). Há uma obra que enfeixa as três direções da investigação gramatical da Maria Helena: A gramática: história, teoria e análise, ensino (2002). Fiz referência apenas aos livros. Se fosse analisar os artigos, encontraria também neles essa mesma coerência.

Tudo o que disse até agora, assim como as sucessivas reedições de seus livros mostram que a obra da Maria Helena conjuga grande quantidade e alta qualidade.

Duas outras características, que não poderia deixar de apontar, emergem dos escritos da Maria Helena. A primeira é a da mulher forte, que ocupa o lugar devido à mulher na sociedade contemporânea e aponta para todas as mulheres o dever e o direito que elas têm de fazê-lo. Afinal, não podemos esquecer-nos de que, de fato, ela é a primeira mulher a publicar uma gramática de referência do português. A autoria gramatical, até a Maria Helena, era um lugar dos homens: de Fernão de Oliveira e João de Barros até Bechara, Celso Cunha e Rocha Lima, passando por Amaro de Roboredo, Jerônimo Contador de Argote, Antônio José dos Reis Lobato, Jerônimo Soares Barbosa, Frei Caneca, Francisco Sotero dos Reis, Júlio Ribeiro, João Ribeiro, Maximino Maciel, Manuel Pacheco da Silva, Boaventura Plácido Lameira de Andrade, Manuel Said Ali, Eduardo Carlos Pereira, Ernesto Carneiro Ribeiro e tantos outros. Com discrição e elegância, Maria Helena toma de assalto esse bastião masculino. A outra característica é a profunda brasilidade. Ao estudar o português do Brasil, insere-se na longa tradição de recusa aos cânones linguísticos portugueses e vê a língua falada no Brasil como marca de distinção da nacionalidade. Evidentemente, não há qualquer ranço nacionalista e xenófobo em sua obra; o que há é a constatação de que os brasileiros têm uma maneira própria de expressar-se, que se manifesta, de maneira variada, nos diferentes quadrantes do país.

Se eu fosse resumir a vida intelectual de Maria Helena de Moura Neves diria que ela se dedicou ao ofício da palavra, procurando desvelar seu mistério e sua epifania.

Maria Helena teve privilegiadas relações com o Departamento de Linguística da USP: participou de inúmeras bancas de nossos orientandos, tomou parte em diversas avaliações do Departamento, fez parte de, ao menos, 12 concursos públicos para provimento de cargo ou processos seletivos para contratação de docentes, e de vários concursos de livre-docência.

O Departamento de Linguística manifesta seu pesar pelo falecimento de Maria Helena de Moura Neves e apresenta suas sinceras condolências à família e aos amigos.